Depressão no Filme “As Horas” de Stephen Daldry
- Christiane Romano

- 13 de set. de 2023
- 6 min de leitura

Segundo o DSM – V, a característica comum dos transtornos depressivos é “a presença de humor triste, vazio ou irritável, acompanhado de alterações somáticas e cognitivas que afetam significativamente a capacidade de funcionamento do indivíduo”. Tais transtornos diferem entre si quanto a duração, momento ou etiologia presumida. (DSM – V pg. 196). O filme “As Horas” apresenta a temática da depressão e seus variados níveis de gravidade e manifestação de sintomas. O enredo interconecta a história de três mulheres e um escritor vivendo em épocas e lugares diferentes, mas com conflitos internos intensos e destrutivos. Uma das personagens do filme e a única não fictícia é a escritora Virgínia Woolf, a qual sofria de depressão profunda e veio a se suicidar em 1941.
A história tem início em Richmond com a cena do suicídio de Virginia, o que já nos revela o seu trágico fim. Após deixar cartas de despedida, a escritora termina com a sua pseudo-existência se afogando no rio que corta a casa de campo para a qual foi levada por seu marido, na tentativa de que esta fosse curada. Nesta mesma casa, em um período que antecede a morte da escritora, podemos identificar a gravidade do estado desta personagem, que se apresenta de forma descuidada com relação a sua aparência e saúde; recusando-se a comer ou sair do quarto, atitude que recebe comentários depreciativos das empregadas da casa. Notamos ainda que Virgínia não demonstra sentimentos de afeto ou interesse por seu marido, mesmo ele sendo atencioso e cuidadoso com ela.
As características apresentadas pela personagem acima enquadram dentro do diagnóstico de transtorno depressivo maior, uma vez que vêm se estendendo por mais de duas semanas, segundo relatos de seu marido, com histórico até mesmo de diversas internações e duas tentativas de suicídio. Tudo isso, somado à perda de interese ou prazer em quase todas as atividades e ausência de apego afetivo, sintomas descritos no DSM – V – pg. 156.
Não há uma cronologia linear na apresentação dos acontecimentos, muito provavelmente em razão do próprio modo atemporal como vivem seus personagens. Em diversas cenas podemos notar esse tempo psicológico diferenciado, lento, quase parado. A uma certa altura do filme, Virginia recebe a visita de sua irmã e sobrinhos à sua casa. Nesse encontro, a personagem tem um choque de realidade à medida que vê sua existência contrastada pela dessas pessoas. A energia que tem aquela família parece não encontrar nela nenhum eco. Pelo contrário, a única identificação que encontra é com um passarinho morto encontrado pelas crianças. Na cena em questão, a personagem se deita ao lado do bichinho em um gesto de empatia total com a situação, revelando até mesmo um possível desejo de estar em seu lugar. Na sequência, ao se despedir de sua irmã, Virginia lhe dá um beijo na boca de forma quase violenta, na aparente tentativa de sugar-lhe a vida que não tem.
Em meio ao drama de Virginia, conhecemos também Laura Brown, uma mulher que parece ter uma vida perfeita: um marido que a ama mais do que tudo, um filho que cuida dela e lhe faz companhia e um outro ainda por vir. No entanto, nada disso parece lhe ser suficiente. A apatia que Sra. Brown apresenta com relação a vida é dissimulada diante do marido, porém não passa despercebida de seu filho, que tenta a todo custo salvá-la dessa condição. Uma atividade corriqueira como fazer um bolo demonstra ser para ela um fardo imenso, mesmo sendo este em razão do aniversário de seu esposo, somado a uma aparente sensação de incapacidade que ela demonstra para a execução deste ato, demonstrando mais uma característica da depressão que a acomete: baixo autoconceito. O único modo como Laura parece se sentir viva é através da personagem de um livro que está lendo, que por sinal é da autoria de Virginia Woolf, intitulado “Mrs. Dalloway”.
A visita de uma amiga e vizinha com problemas de saúde, deixa Mrs. Brown ainda mais perturbada. A personagem identifica em Kitty toda a vontade de viver que não tem em si mesma e, em uma atitude semelhante à de Virginia com sua irmã Vanessa, dá um beijo na boca de sua amiga, porém este beijo parece mais como uma tentativa de tomar desta a condição de doente que poderá vir a morrer, desejo que parece ter. Após a visita de sua amiga, Mrs. Brown aparentemente toma a decisão de acabar com o seu sofrimento; carregando consigo alguns vidros de remédio, deixa seu filho aos berros na casa de uma senhora; aluga um quarto de hotel e quase acaba com sua vida. Nesse ponto do filme temos a interconexão das histórias; é como se a Mrs. Dolloway do livro fosse a própria Laura e tivesse o seu destino alterado pela mudança de ideia da escritora; Virginia decide que outra pessoa terá que morrer e não a sua heroína. Laura aparentemente desisti de seu plano e volta para a casa. No entanto, toma outra decisão de fuga, a qual só é revelada no final do filme.
Outra personagem com quem nos deparamos é Clarissa Vaughan, uma editora que se configura como anfitriã, a semelhança da Mrs. Dalloway do romance de Virginia Woolf. Clarissa mantém uma relação de dez anos com uma produtora de TV, mas vive uma relação de dependência com Richard, um amigo, escritor e portador do vírus da AIDS, com quem teve um breve romance no passado. Richard apresenta sintomas de transtorno depressivo, assim como as outras personagens apresentadas; vive trancado em seu apartamento, que só é limpo por Clarissa quando esta vai até lá; ele também só come, toma banho e remédios também por insistência dela.
Em relação às outras personagens, Clarissa parece ter seu ego mais bem estruturado, no entanto dois eventos apresentados no filme demostram que ela possa estar vivendo um episódio depressivo maior, porém dissimulado pelas suas muitas atividades.
No dia em que tudo se passa, que é o dia da festa de premiação de Richard organizada por Clarissa, ela vai ao apartamento deste e os dois tem uma discussão. Richard a acusa de não viver a própria vida ao ficar presa à dele e dá a entender que não deseja mais essa situação. Clarissa se perturba muito com o fato, ainda mais ao receber a visita do ex-companheiro de Richard, Louis Walters, e se deparar com a realidade de que este viveu a vida dele, enquanto ela parou sua vida para cuidar de alguém de quem teve apenas um verão e nada mais. Nesta cena, Clarissa chora descontroladamente e diz ter um pressentimento, talvez a desconfiança de que naquela tarde aquele que era a sua fuga da vida viria a deixá-la. E é o que acontece. Ao ir buscar Richard para a festa, Clarissa chega mais cedo e o encontra abrindo as janelas do apartamento como que em busca de liberdade; liberdade esta que encontra com a sua própria morte. Ele diz que tem vivido por ela, mas que ela tem que deixa-lo ir e após afirmar que ama a Sra. Dalloway, cita um trecho também dito por Virginia em sua carta de despedida “Não creio que duas pessoas possam ser mais felizes do que fomos” e se joga pela janela do prédio.
A morte de Richard revela sua verdadeira identidade. Sua mãe, Laura Brown reaparece e relata o que ocorreu após aquele dia em tentou se matar. Em uma conversa com Clarissa, que foi quem ligou para ela para avisar-lhe da morte de seu filho, Laura não mostra arrependimento por ter abandonado o seu filho com 5 anos de idade e sua filha recém-nascida. Pelo contrário, reafirma que não havia para ela outra alternativa “O que significa arrependimento quando você não tem outra escolha? ”, “É o que você pode suportar”, “Era a morte; escolhi viver”.
O filme “As Horas” nos faz sentir na pele o que é ter um transtorno depressivo. A angústia vivida pelas personagens nos remete a uma outra atmosfera, tempo e percepção. Ainda que com manifestações diferentes, três das quatro personagens parecem apresentar depressão maior, já evoluída para o diagnóstico de distimia em razão do tempo em que têm estado nesta condição. Laura Brown, Virginia e Richard com seu humor deprimido a maior parte do dia, perda de interesse ou prazer em todas ou quase todas as atividades da vida, relatam sentirem-se vazios, sem esperança e possuem pensamentos recorrentes de morte, pensamentos que não conseguimos nem mesmo recriminar dada a identificação que o diretor nos faz ter com as personagens e esse é, na minha opinião, o brilhantismo de “As Horas”.





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